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domingo, 27 de novembro de 2016

‘Vendedores de roupa’ e a extinção da velha moda brasileira

Precisou um tombo grandioso de metade das grifes da São Paulo Fashion Week, a semana de desfiles mais importante do país, para que estilistas caíssem na real e provassem que se diferenciam das marcas “vendedoras de roupa”.
Classe do varejo que costuma disfarçar coleções puramente comerciais sob a capa de desfiles corretinhos, assinados por um talento criativo que não verá suas criações na loja, essas grifes embutiram na cabeça dos criadores que sucesso significa vender roupa a quilo.
Nessa última temporada, ficou claro, a ausência de alguns desses vendedores de desejos falsos mostrou a fragilidade de sua “receita do sucesso”, essa que nos últimos anos extirpou a autenticidade de nomes como Marcelo Sommer, Fause Haten, Amir Slama e estilistas que ou venderam suas marcas, ou viraram copiadores de moda estrangeira em grandes grupos.
O modelo de oferecer uma etiqueta de prestígio mas entregar um produto-qualquer-coisa afundou as vendas quando o bolso do consumidor, agora bem mais informado que há 20 anos, encolheu.
Em tempos escassos, o cliente maduro ou opta por preço baixo e qualidade aceitável (papel das redes varejistas), ou investe em algo que realmente atraia por execução e qualidade inquestionáveis. Não há espaço para o meio termo, não há uma Gisele estampada no catálogo que salve o caixa.
Foi do ato de separar o real do ilusório que nomes fortes da semana de moda apontaram caminhos para o renascimento da moda brasileira, um futuro de grifes economicamente viáveis e criativas.
A primeira grande lição assimilada pelos designers é que o futuro envolve colaboração.
O estilista Alexandre Herchcovitch mostrou já no primeiro dia que marcas pequenas não ganham mercado sem o apoio de outras, consolidadas no varejo mas carentes de uma mão criativa consistente que amplie sua inserção no universo da moda.
Na passarela montada no Masp, ele mostrou colaborações bem amarradas da À La Garçonne, grife que toca ao lado do marido, o empresário Fabio Souza, com a malharia Hering, a marca de alfaiataria Camisaria Colombo, o joalheiro Hector Albertazzi e a marca de sapatos Converse. Todas elas cederam suas fábricas para a produção de peças que serão vendidas na loja da etiqueta.
Mesma lógica seguiu Rafael Varandas em sua Cotton Project. A grife de sapatos Puma patrocinou o desfile do jovem estilista e ainda produzirá os dois modelos de sapatos que levam sua assinatura.
Parceria também foi a base da estreia da grife Just Kids, das estilistas Karen Fuke, ex-Triton, e Juliana Jabour. Amigas de longa data, enveredaram por um “streetwear” luxuoso, com moletons bordados e uma imagem de moda urbana, real, o outro braço importante da nova cartilha fashion.
Ser uma grife “real”, hoje, não tem a ver com a noção de roupa palatável como o combo de jeans e camiseta das passarelas datadas, mas sim servir de tradução do novo uniforme jovem, um unissex bem cortado que conta histórias por meio de estampas, grafismos, cores e rimas. Versos como os da LAB, dos rappers Emicida e Evandro Fióti.
Auxiliados pelo estilista João Pimenta —mais uma vez, aqui há o método de criação colaborativa—, colocaram na passarela uma série de roupas tingidas de preto e branco, inspiradas na mistura das estéticas do Japão e da África, no resumo das raízes da nova miscigenação brasileira.
Para ilustrar essa pluralidade, um desfile de cores e corpos que não costumam aparecer nas campanhas dos “vendedores de roupa”. Gordos e negros compuseram a maior parte da seleção de modelos, para lembrar que é próprio da moda levantar bandeiras, questionar um padrão vigente.
Que surpresa, então, foi a apresentação histórica de Ronaldo Fraga, um desfile de 29 modelos transexuais trajadas com versões de uma mesma silhueta, um hino à diversidade e à moda como expressão das individualidades humanas.

http://ffw.uol.com.br/desfiles/sao-paulo/verao-2017-rtw/ronaldo-fraga/1582870/

Foi a partir da crise, tanto criativa como financeira, responsável por enxugar a programação de desfiles, extirpar roupas de mentira e enterrar nomes promissores, que o óbvio voltou à superfície.
Uma moda que una qualidades ímpares, entenda os desejos da rua e transforme em beleza os conflitos modernos é aquela que fará o “millennial”, esse jovem consumidor globalizado, escolher entre uma roupa e uma ideia.